Chão- rumo

Lindo texto de Maria de Fátima Lambert- São imagens do Chão (Terra) e do Céu (Ar) quando se elevam as formas que depois descem ou flutuam, evoluem e param. Sob a força inestimável de plantas, insetos, batráquios, répteis e demais seres a rastejarem, saltarem, suspensos ou a pousarem na terra. São os reinos em que asa tartarugas sobem pela Água acima (charcos e rios grandes) e olham o céu por cima da linha do horizonte. Mas, voltando à terra, eis a serpente que aguça a cabeça, vendo-se o corpo sinuoso e esguio, igualmente em ascensão, circulando em redor de folhas e caules e raízes. Há mais bichos, mas foi assim que começou o mito do Paraíso que é também o mito da Queda. No Paraíso havia muita harmonia entre as espécies animais e vegetais e marinhas e aéreas: uma verdadeira enciclopédia de intuições e afinidades entre contrários. Não procuravam a coincidência dos opostos, como Nicolau de Cusa quis, porque, na realidade, não havia qualquer necessidade disso. Pois, não havia gente ainda, por isso, acreditava-se que não havia pensamento. Errado. Vamos pensar, desta vez, em modo do Animalário Universal do Professor Revillod, o tal famoso Almanaque da Fauna Mundial (ilustrações de Javier Saéz Castán e Miguel Murugarren, 2003), onde as espécies se entrelaçam e confundem, atraiçoam coerências e transfiguram as crenças. O Animalário faz-me pensar em remissão-subversão-absorção. Ou seja, um pouco como seria o paraíso ou, neste caso, as confluências e interseções animais e vegetais na obra de Engrácia Cardoso.  Eis alguns dos habitantes e algumas duplas plausíveis que, cabendo-nos, enquanto espetadores e visitantes, identificar, reconhecer ou inventar. 
Lembre-se o título de Agustina Bessa-Luís Um bicho da Terra (1984); pensem-se as efabulações mítico-poéticas da imaginação da matéria, a que aludiu Gaston Bachelard, a propósito de A terra e os devaneios da Vontade (1948). No caso de Engrácia Cardoso, o filósofo-protagonista embrenha-se em cada pessoa que pense-veja-se-aproprie desta iconografia não-domesticável. 
O ar, mantendo fidelidade a Bachelard - L’Air et les songes - Essai sur l’imagination du mouvement (1943) - envolve as pinturas penduradas que nos envolvem e que passeamos, que rodeamos para conhecer o “lado de trás do espelho”. Porque estas pinturas são fragmentos que quase saem do nosso imaginário em modo Alice no país das maravilhas. Mas não existem Alice(s), nem coelhos, nem relógios, nem espelhos. Há sim, tempos e maravilhas insuspeitas, feitas de incredulidade e lucidez. Há, pois, espaços intersticiais: os famosos vazios entre. Que, neste caso, permitem entrar dentro de trechos de paisagem que, de rompante, entrou na sala de exposição. Fascinam os olhos e acalentam a alma, mas num criticismo estético plasmado na sedução das cores e das formas, entre pintura e desenho.
cadernos, Quase Galeria, curadoria Maria de Fátima Lambert, maio 2024

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *